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Leituras

(…) A minha infância foi um tempo de medos silenciados; terror da Margara, que me detestava, de que aparecesse o meu pai a reclamar-nos, de que a minha mãe morresse ou se casasse, do Diabo, dos jogos bruscos, das coisas que os homens maus podem fazer às meninas. Nem penses em entrar num automóvel de um desconhecido, não fales com ninguém na rua, não deixes que te toquem no corpo, não te aproximes dos ciganos. Sempre me senti diferente, desde que me lembre fui uma marginal; não pertencia realmente à minha família, ao meu meio social, a um grupo. Julgo que desse sentimento de solidão brotam as perguntas que nos impulsionam a escrever, é na busca de respostas que se geram os livros. O consolo nos momentos de pânico foi o persistente espírito da Vovó, que costumava desprender-se das pregas do cortinado para me acompanhar. a cave era o ventre obscuro da casa, lugar selado e proibido até ao qual eu deslizava através de uma fresta de ventilação. Sentia-me bem naquela caverna a cheirar a humidade, onde brincava a rasgar as trevas com uma vela ou a mesma pilha que usava para ler à noite sob os lençóis. passava horas entretida com jogos calados, leituras clandestinas e todas essas complicadas cerimónias que as crianças solitárias inventam. Tinha armazenado uma boa provisão de velas roubadas na cozinha e tinha uma caixa com pedaços de pão e bolachas para alimentar os ratos. Ninguém suspeitava das minhas incursões ao fundo da terra, as criadas atribuíam os ruídos e as luzes ao fantasma da minha avó e nunca se aproximavam daquele lugar. O subterrâneo consistia em duas amplas divisões de tecto baixo e chão de terra batida, onde surgiam expostos os ossos da casa, as suas tripas de canos, a sua peruca de cabos eléctricos; ali se amontoavam móveis quebrados, colchões esventrados, pesadas arcas antigas para viagens de barco de que já ninguém se lembrava. Num baú metálico marcado com as iniciais do meu pai encontrei uma colecção de livros, fabulosa herança que iluminou esses anos da minha infância: O Tesouro da Juventude, Salgar, Shaw, Verne, Twain, Wilde, London e outros. Supus que eram proibidos por pertencerem àquele T. A. de nome inominável, não me atrevi a traze-los para a luz do dia e, alumiada por candeeiros, degluti-os com a voracidade que despertam as coisas interditas, tal como anos mais tarde li às escondidas As Mil e uma Noites, embora na realidade naquela casa não houvesse livros censurados (…)

in ‘Paula’ (Isabel Allende)

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Leituras

(…) A terra estava em fúria, qual um touro varado por petardos numa arena. Muitos iriam realmente interpretar aquelas convulsões como revolta moral da natureza, ante os pecados que os humanos andavam cometendo. Muitos acharam que o bom Deus do Papa castigava Lisboa pela sua submissão aos heréticos ingleses. (…) Com o segundo abalo, desistiu. Sentou-se a espera de que o chão, por baixo dela, se abrisse, e a mão dos mortos se estendesse e a puxasse para a sua companhia. (…) Ouvia os gritos da cidade ao longe. (…) Viu no horizonte, acima de Lisboa, uma poeira imóvel, como um escudo.(…) Foi alcançada pelos fugitivos. O horror empurrava-os para a frente. (…) As carruagens corriam brutalmente, abrindo espaço com o chicote e os gritos dos cocheiros.(…) toda a gente pensava apenas em ganhar distância, e muito dolorosas decisões foram tomadas, quando se tratou de deixar para trás os moribundos. (…)

in Lillias Fraser (Hélia Correia)

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Leituras – ‘A sombra do vento’

(…)
– Este lugar é um mistério, Daniel, um santuário. Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte. Há já muitos anos, quando o meu pai me trouxe pela primeira vez aqui, este lugar já era velho. Talvez tão velho como a própria cidade. Ninguém sabe de ciência certa desde quando existe, ou quem o criou. Dir-te-ei o que o meu pai me disse a mim. Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, os que conhecemos este lugar, os guardiães, asseguramo-nos de que chegue até aqui. Neste lugar, os livros de que já ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo, vivem para sempre, esperando chegar um dia às mãos de um novo leitor, de um novo espírito. Na loja nós vendemo-los e compramo-los, mas na realidade os livros não têm dono. Cada livro que aqui vês foi o melhor amigo de alguém. Agora só nos têm a nós, Daniel. Achas que vais poder guardar este segredo? (…)
O costume é que a primeira vez que alguém visita este lugar tem de escolher um livro, aquele que preferir, e adoptá-lo, assegurando-se de que ele nunca desapareça, de que permaneça sempre vivo. É uma promessa muito importante.
(…)

CARLOS RUIZ ZAFÓN (A sombra do vento)

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O livro de hoje

                 ‘Os Lusíadas’

 

Daqui fomos cortando muitos dias,
entre tormentas tristes e bonanças,
no largo mar fazendo novas vias,
só conduzidos de árduas esperanças.
Co mar um tempo andámos em porfias,
que, como tudo nele são mudanças,
corrente nele achámos tão possante,
que passar não deixava por diante:
Era maior a força em demasia,
segundo para trás nos obrigava,
do mar, que contra nós ali corria,
que por nós a do vento que assoprava.
(…)                             ‘Os Lusíadas’ – Canto V

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Livro. Leitura.

[…] Para onde quer que Joe tivesse ido, tinha levado as sementes consigo. Mas para onde teria ido? Os mapas ainda estavam pendurados nos seus lugares na parede, demarcados e assinalados com a pequena letra minuciosa de Joe, mas não havia nenhuma pista para onde teria ido. Não havia nenhum padrão nos seus variados itinerários, as linhas coloridas juntavam-se numa dúzia de pontos diferentes: Brasil, Nepal, Haiti, Guiana Francesa. Procurou debaixo da cama, mas só encontrou uma caixa de cartão cheia de revistas velhas. Tirou-as para fora com curiosidade. Joe nunca fora grande leitor. Exceptuando o Herbanário de Culpeper e um jornal ocasional, raramente o vira a ler o que quer que fosse, e quando lia, fazia-o com aquela lentidão de cenho franzido de alguém que deixara a escola aos catorze anos, tendo de seguir o texto com o dedo. Mas estas revistas eram velhas e amarelecidas, apesar de terem sido guardadas na caixa com cuidado e recobertas com um pedaço de cartolina para que o pó não as estragasse. As datas na capa foram uma revelação: 1947, 1949, 1951, 1964… Eram velhos exemplares da National Geographic.

Sentou-se no chão por uns minutos a revirar páginas tornadas crespas com o tempo. Havia algo de reconfortante nestas revistas, como se, simplesmente por as tocar, conseguisse trazer Joe para mais próximo de si. Aqui estavam os lugares que Joe tinha visto, as pessoas entre as quais Joe tinha vivido – recordações, talvez, dos seus muitos anos pela estrada fora.

Aqui estava a Guiana Francesa, o Egipto, o Brasil, a África do Sul, a Nova Guiné. As capas outrora brilhantes jaziam ao lado umas das outras no chão poeirento. Reparou que Joe tinha marcado algumas passagens a lápis e que fizera anotações noutras. Haiti, América do Sul, Turquia, Antártida. Eram estas as suas viagens, era este o itinerário dos seus anos de errância. Cada uma datada, assinada, codificada em muitas cores.

Datadas e assinadas.

Um frio dedo de suspeita percorreu-lhe a espinha.

Começou a compreender, no início lentamente, mas depois virando as páginas com uma certeza crescente terrível. Os mapas. As histórias. Aqueles exemplares antigos da National Geographic e cujas datas remontavam até à guerra…

Olhou fixamente para as revistas, tentando encontrar outra razão, algo que explicasse. Mas só podia haver uma explicação.

Aqueles anos pela estrada fora nunca tinham existido. Joe Cox era mineiro e sempre fora mineiro, desde o dia em que deixou a escola até ao momento em que se reformou. […] Todas as suas experiências, as suas histórias, as suas aventuras, as suas escapadelas por um triz, os seus feitos de capa e espada, as suas damas no Haiti, os seus ciganos viajantes – fora tudo tirado desta pilha de revistas velhas…

[…]

in Vinho Mágico (Joanne Harris)

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Luis Sepúlveda – ‘O velho que lia romances de amor’

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Leituras…

[…] Quando Ricardo Reis desceu para jantar, já perto das nove horas, conforme a si mesmo havia prometido, encontrou a sala deserta, os criados a conversarem a um canto, finalmente apareceu Salvador, mexeram-se os serventuários um pouco, é o que devemos fazer sempre que nos apareça o superior hierárquico, basta, por exemplo, descansar o corpo sobre a perna direita se antes sobre a esquerda repousava, muitas vezes não é preciso mais, ou nem tanto, E jantar, pode-se, perguntou hesitante o hóspede, claro que sim, para isso ali estavam, e também Salvador para dizer que não se admirasse o senhor doutor, na passagem do ano tinham em geral poucos clientes, e os que havia jantavam fora, é o réveillon, ou révelion, (…) Deixe lá, vai mais cedo para a cama, consolou Ricardo Reis, e Salvador respondeu que não, que sempre ouvia as badaladas da meia-noite em casa, era uma tradição de família, comiam doze passas […]

in ‘O ano da morte de Ricardo Reis’ (José Saramago)

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Humor e leitura

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Levou-me um livro em viagem…

Levou-me um livro em viagem,
não sei por onde é que andei.
Corri o Alasca, o deserto,
andei com o sultão no Brunei?
P’ra falar verdade, não sei.

 

Com um livro cruzei o mar,
não sei com quem naveguei.
Com marinheiros, corsários,
tremendo de febres e medo?
P’ra falar verdade, não sei.

 

Um livro levou-me p’ra longe,
não sei por onde é que andei.
Por cidades devastadas,
no meio da fome e da guerra?
P’ra falar verdade, não sei.

 

Um livro levou-me com ele
até ao coração de alguém,
E aí me enamorei-
de uns olhos ou de uns cabelos?
P’ra falar verdade, não sei.

 

Um livro num passe de mágica
tocou-me com o seu feitiço:
Deu-me a paz e deu-me a guerra,
mostrou-me as faces do homem
– porque um livro é tudo isso.

 

Levou-me um livro com ele
pelo mundo a passear,
Não me perdi nem me achei
– porque um livro é afinal …

 

Um pouco da vida, bem sei.

 

João Pedro Mésseder

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A leitura na arte

Malhoa

Malhoa

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